O inverno tinha sido um dos mais rigorosos desde que nasci e a geada queimara as plantações de café. Lembro-me que todos os adultos reclamavam das perdas incalculáveis. Eu tinha pouco mais de oito anos e não entendia bem o que alguns pés de café significavam para os adultos.
Para mim, fim de inverno e reinicio das aulas eram momentos esperados, primeiro porque, o fato de morar em uma fazenda longe da cidade me afastava das outras crianças e sendo único filho, não tinha com quem brincar. Segundo porque, pretendia dar revanche no jogo de burica com o meu colega que no ultimo dia de aulas antes das férias, havia “ rapelado” as minhas buricas, entre elas, uma em especial que tinha até nome. Eu a chamava de batatão-jogadora-da-sorte.
Durante as férias passei os dias angustiado sabendo que a minha burica predileta, a Jogadora-da-Sorte, estava em outras mãos. Recuperá-la tornou-se para mim uma obsessão.
Lembro-me que, nesse último e fatídico dia, fui a escola com os bolsos cheios de búrica e, como sempre levei a minha Batatão-Jogadora-da-Sorte . Acreditava que eu não seria tão bom no jogo se não fosse aquela burica a quem atribuía personalidade própria. Com ela, nos últimos dias que antecederam ao ultimo antes das férias, eu tinha rapelado a todos os meus colegas.
Nós, eu e a minha Jogadora-da-Sorte, éramos o terror na escola, exceto para um colega. Somente um que sempre foi o meu grande desafio. Nunca jogamos, não querimos um confronto. Ele dizia pra todos que eu era, sem duvida o melhor jogador de buricas que ele já havia conhecido. Quanto a mim, disfarçando a falta de modéstia, discordava dizendo a todos que ele sim era o melhor jogador que eu conhecia.
Naquele ultimo dia de aula foram tantos os apelos dos nossos colegas para que jogássemos que decidimos aceitar. Jogaríamos até a ultima bolinha que tivéssemos nos bolsos, e o vencedor ficaria com o titulo de “o melhor”. Na hora e local marcado nos aproximamos um do outro, cada um ostentando aquele sorriso maroto nos lábios. Um solene aperto de mãos. Definidas as regras passamos aos preparativos do campo, aplainando as areias em meio a um grande circulo formado por nossos afoitos torcedores.
Enquanto ele riscava um triangulo na areia, contei quatro jardas e fiz um risco reto no solo de terra batida. Segundo as regras selamos cinco bolina cada um, em seguida disputamos para ver quem começaria primeiro. A burica dele ficou a um palmo da risca o que me permitiu ultrapassa-la facilmente com a minha Jogadora- da –Sorte. A sorte, como sempre estava comigo, venci ao me aproximar mais da risca e fui o primeiro a jogar.
Depois de assoprar três vezes sobre a Batatão lancei-á com tamanha precisão que fez espalhar bolinhas para todos os lados. Pelo menos quatro ou cinco foram atiradas para fora do triangulo, e nas jogadas sucessivas, uma após outra fui arrancando a cada uma que restava.
Realmente a Batatão parecia ter vontade própria e, a cada vez antes de lançá-la assoprava três vezes para afastar as más influencias. Na segunda partida não obtive o mesmo êxito, embora não tenha saído derrotado. Em meio a torcida, colegas ofereciam dinheiro e trocas vantajosas pela Batatão-Jogadora-da-Sorte e eu a exibia com orgulho. Somando vitorias e derrotas, terminamos a primeira fase da disputa, sem saber qual de nós dois foi o melhor.
JOGOS DE BURICAS - II
Quando o sinal de entrada tocou, meus bolsos já não estavam tão pesados quanto cheguei. Percebi que perdi mais do que ganhei. Deveria ser mais atencioso na segunda rodada que ficou marcada para o intervalo do recreio. O fato é que ao termino de um intervalo, recebendo alguns tapinhas de consolo nos ombros, voltei para a sala de aula com os bolsos vazios. Só me sobrava a Batatão, minha bolinha predileta, minha jogadora da sorte e .... o orgulho ferido.
Meu algoz ofertou-me vinte bolinhas pela minha jogadora, fiquei tentado em aceitar. Se tivesse mais buricas talvez pudesse me recuperar da derrota e ficar com o titulo, mas desfazer-me da Batatão jamais passou pela minha cabeça. Recusei. Recusei. É claro que recusei, sem a Batatão certamente eu seria um fiasco ainda maior. Se tivesse condições de obter novas buricas , eu certamente o derrotaria. Marcamos a revanche para depois das férias.
Meus planos para o primeiro dia de aula após as férias se resumia em usar o dinheiro do lanche para comprar novas buricas e na revanche eu o venceria. Durante os trinta dias que passei em casa não pensava em outra coisa, logo no primeiro dia de aula, na primeira oportunidade, eu o deixaria com os bolsos vazios, tão vazios quanto ficaram os meus.
As férias acabaram. No primeiro dia de aula, levantei bem mais sedo do que o necessário e dei uma boa polida na Batatão e a coloquei em lugar seguro do meu porta-lápis. Minha mãe preparou-me o lanche e aproveitei para pedir-lhe uns trocados. Disse que era para comprar refrigerante. Não podia lhe contar a verdade, mas precisava do dinheiro para comprar búricas.
De pronto ela me fez um suco e o pôs em uma garrafa de vidro. Não me eu o dinheiro, dizendo que o suco era melhor do que as bebidas artificiais. Eu não sabia das dificuldades que estavam passando por causa da geada, e fui para a escola com o cérebro fervendo. Sem dinheiro nada de búricas e sem búricas nada de revanche.
Sem revanche só me restava aceitar o fracasso. Assim que cheguei deparei-me com meu adversário, no pátio em frente a escola, rodeado de amigos. Eu tinha Jogadora-da-sorte e ele, o titulo de melhor jogador.
Só me restava uma saída para tentar salvar minha reputação: Procurei-o e lhe propus aceitar tratar vinte bolinhas pelo meu Batatão. Meu adversário, doido que estava para ficar com a minha jogadora da sorte, pensei_ Certamente me dará por ela dus dezenas de búricas. -Propus-lhe a troca e ele concordou com a condição de dar-me cinco bolinhas desde que as disputássemos imediatamente numa única rodada.
Com o coração doendo, entreguei-lhe a Batatão. Dentre as cinco bolinhas escolhi uma que me pareceu bastante esférica e boa para jogar. Combinamos que o jogo seria logo após o final da ultima aula. Todas da minha classe, naturalmente torceriam por ele, o novo ídolo. Quanto a mim sem torcida, caso perdesse receberia o golpe de misericórdia a derrota final e, o pior de tudo que seria a perda definitiva da minha Jogadora-da-sorte. Eu acreditava piamente de que aquela búricas de estimação me trazia sorte, mas deveria enfrentar meu adversário sem ela. Se com ela eu já não estava sendo grande coisa, sem ela eu não seria nada.
Ao termino da aula encontramo-nos no local de costume. Nossos olhares se cruzaram como lanças de fogo. Ele sempre ostentando aquele sorriso vitorioso. Para mim seria um embate decisivo. Viver ou morrer para os jogos de búricas. Se perdesse talvez tivesse ate que mudar de escola. A pecha de derrotado certamente me acompanharia para qualquer lugar onde eu fosse. Sem a Batatão, minha jogadora da sorte, as chances de vitória se reduziam a qualquer coisa próxima de zero.
Preparamos o campo de batalha e selamos quatro bolinhas para cada um, estabelecemos as regras do jogo, quais sejam, nenhuma.
Na disputa para saber quem jogava primeiro, meu adversário levou vantagem, e em sucessivas e precisas tacadas “rapelou” quase todas as bolinhas do triangulo. Talvez isso o tenha empolgado, e o excesso de empolgação fez com que ele errasse uma tacada. O que bastou para que eu ficasse com as ultimas duas bolinhas que sobraram.
Com essas duas bolinhas retomamos a segunda jogada com quatro no triangulo, terminamos empatados. Com as jogadas seguintes senti que meus bolsos se avolumavam de búrricas, sempre ganhando mais do que perdendo. Foi ai que ele pediu uma trégua ate o dia seguinte. Fui para casa com os bolsos cheios e sem a minha Batatão favorita.
No dia seguinte voltamos ao campo de batalha e sofri inúmeras derrotas. Percebendo que não podia vencê-lo usei da mesma estratégia adiando o jogo. Pedi uma trégua ate o dia seguinte. A estratégia de adiar as jogadas propiciou o aumento de torcedores.
No terceiro dia de embate a torcida vibrante achava-se dividida, entre ele e eu, quando recomeçamos. Meu adversário e algoz não ostentou a minha Jogadora-da-Sorte e tive a nítida sensação de que ele percebendo que poderia ser derrotado a deixou em casa, ou escondida, porque sabia que no final eu a queria de volta.
O coração bateu forte e senti um calafrio percorrer a espinha. A vitória não seria completa se eu não recuperasse a minha bolinha predileta. Talvez fosse uma estratégia, muito bem arquitetada por parte do meu adversário, porque sem a Batatão por perto, as chances de ganhar o jogo seriam mínimas, já que eu contava com a sorte emanada dela.
Nesse momento em que nos preparávamos para mais uma acirrada disputa senti muita raiva, embora não soubesse se a raiva que eu sentia era dele ou de mim. Recomeçamos a partida. Como sempre sem nenhuma regra, e desta feita sem tréguas. O jogo acabaria no momento em que um de nós não tivesse mais nenhuma búrricas nos bolsos.
Jogada após jogada três horas se passaram e três horas mais tarde não lhe sobrava qualquer bolinha nos bolsos. A torcida toda estava do meu lado. Eu havia recuperado a reputação de melhor jogador derrotando o meu algoz, mas a vitória não estava completa, porque a Batatão que me dava sorte tinha ficado com ele.
Foi aí que ele ergueu os braços e gritou para que todos pudessem ouvi-lo:
- Esta bem! Estamos empatados, porque o jogo não acabou...!
Meteu a mão na mochila e retirou um estojo. É que ele trazia consigo, como algo precioso, bem guardado no seu porta-lápis, a minha Jogadora-da-Sorte. Mostrou-a translúcida entre os dedos, uma esférica e legitima olho-de-cabra. Meu coração bateu forte e eu faria qualquer coisa para recuperar aquela búrrica milagrosa. Segurando-a entre o indicador e o polegar propôs-me trocá-la por vinte bolinhas de búrrica, eu ofereci cinco, ele propôs quinze e eu concordei com a condição de disputá-las imediatamente. E ele aceitou o desafio.
Não me lembro quantas foram as jogadas, mas em seguida sem misericórdia e com a Batatão-da-Sorte em minhas mãos rapelei-lhe as quinzes búrricas, derrotando-o e humilhando-o como eu havia sido outrora derrotado e humilhado. Era o fim da revanche e, em meio a ovação da torcida, a consagração do melhor.
Por um instante ficamos em silencio mantendo uma certa distancia e olhando um para o outro. Não havia em nossos olhares nenhum brilho de vitória ou derrota, mas de respeito.
Ele deu um passo em minha direção e estendeu a mão, olhou dentro dos meus olhos e disse: -Você é mesmo o melhor! Não posso negar que nesse instante fui dominado por um impulso de orgulho, mesmo assim, retruquei: - Foi apenas um jogo, você ainda é um dos melhores!
Meu adversário sorriu, virou-se e foi saindo de cabeça erguida, sem nenhum resquício de magoa ou rancor. A torcida em silencio observava com respeito e admiração. Sem duvida ele podia até estar derrotado, mas como adversário, era muito melhor do que eu.
Foi nesse momento, que aprendi algumas lições que ainda hoje me servem de exemplo; Há tanta nobreza na vitória quanta na derrota, desde saibamos ganhar ou perder.
Alcançando-o a largos passos porque já ia longe, segurei-o pelo braço e na palma entreaberta de sua mão depositei a minha preciosa Batatão, a Jogadora-da-Sorte. Olhei-o dentro dos olhos e lhe disse: - Agora sei porque você é melhor do que eu!
Aquela búrrica pela qual tanto lutei era o troféu que eu lhe dava como símbolo da sua nobreza. E foi a última vez que participamos de “Jogos de Búrrica”.
FIM
Pesquisamos alguns site interessantes sobre os jogos de búricas um jogo ludico das décadas passadas que encantou a meninada, entre pipas peões e futebol. Vale apena conferir:http://www.jangadabrasil.com.br/maio21/ca21050b.htm