A NOITE EM QUE MUDAMOS NOSSAS VIDAS - CONTO BASEADO EM FATOS REAIS (NÃO RECOMENDADO PARA MENORES DE 12 ANOS)
Naquela tarde estávamos reunidos eu e alguns dos meus colegas de farda e fomos num barzinho com musica ao vivo da Avenida Ipiranga. Estávamos dispostos a chapar uma meia dúzia de rabo-de-galo, uma mistura de aguardente com um derivado de vinho, muito comum na época. Era o nosso primeiro dia como civis depois de termos servido ao exercito brasileiro durante os melhores anos de nossas vidas.
Ocorreu que naquele barzinho, o nível não nos permitia tal extravagancia porque só serviam bebidas finas e coquetéis sofisticados, muito além do nosso reles paladar. Foi que encontramos o coronel Azanor, um homem carrancudo que depois de algumas doses de Absinto, sua bebida preferida, já se mostrava alegre e divertido.
Foi o coronel Azanor que nos convidou para irmos ao clube dos oficiais, um local requintado só frequentado pelo alto escalão das forças armadas. Se ainda estivéssemos na ativa certamente não nos convidaria, mas era nosso primeiro dia de vida civil. Assim que voltamos de uma missão no Araguaia, com a qual não pactuávamos, pedimos baixa.
Fomos todos com o coronel em um caminhão de campanha do exercito, dirigido por um jovem soldado da artilharia, com cara de mau humorado, talvez porque não estava satisfeito com seu posto de motorista, mas que cumpria sua missão sem questionar, como deve ser um bom soldado. Paramos na casa do coronel para apanhar sua linda filha. Uma jovem de dezessete ou dezoito anos, de olhos verdes e pele morena.
O coronel logo avisou que a filha dele não era para o nosso bico, e sabíamos que falava sério mesmo quando estava com o coco cheio de álcool. A menina, de atitudes recatada e submissa ao pai. De um modo sutil, embora perceptível por todos, olhou para o meu amigo Reinaldo Ciqueira, que enrubesceu. O coitado era tímido demais para responder ao olhar e ter qualquer reação descontraída que alegrasse a todos. Foi motivo de chacota dos colegas durante todo o trajeto até o salão de baile dos oficiais.
Nesse baile aconteceram coisas simples que sem importância mas que mudaram a vida de muitos que ali estavam.
Ciqueira caiu na graça do coronel e teve a chance de dançar com sua linda filha antes que aparecesse certo tenente de olhar altivo e de uma empáfia nunca vista em um só sujeito. Duas estrelas na gola e ele se achava a própria constelação. Assim que o tenente chegou o pobre Ciqueira foi para um canto e bebeu tanto whisky que dormiu debruçado na mesa. Por sorte não era do tipo que dava trabalho quando bêbado.
Outro sujeito de nome Dermeval, nosso companheiro de campanha, era um dos homens mais destemidos que havia em nosso pelotão, passou a noite toda conversando com um oficial da marinha. De posse de uma garrafa de vinho deixaram o salão e quando terminou o baile, fomos embora, e os dois não haviam retornado.
Renner, o que não bebia, se ofereceu para cantar com a orquestra. O maestro queria tira-lo do palco, mas insistimos tanto para ouvi-lo que acabou cedendo e deixou o garoto soltar a voz. O garoto saiu-se tão bem que foi aplaudido de pé. Um talento que passou despercebido durante todos os anos em que ficamos arranchados.
O garçom me trouxe uma taça enorme com um coquetel de várias bebidas, todo decorado, que eu não havia pedido. Achei aquilo estranho, mas aceitei, afinal nunca tinha visto ou bebido coisa semelhante. Era uma delicia, um sabor diferente a cada gole. Estava a saborear aquele requinte etílico, quando se aproximou uma senhora de uns sessenta anos aproximadamente.
Muito simpática, trazia um coquetel igual, levantou a taça, num gesto solene e sem dizer boa noite, comentou: - Delicioso. Sabia que você ia adorar! Olhei para o garçom, que estava a umas duas mesas de distancia, e ele sorriu. Todos os olhares se voltaram para mim. Levantei-me como manda o protocolo nas forças armadas, fiz as devidas apresentações e puxei a cadeira para que ela se sentasse. Logo o coronel, a filha e o enpafioso namorado se aproximaram e nos fizeram companhia. Foi ai que fiquei sabendo que aquela senhora nada mais era que a famosíssima professora de dança de salão, Cidinha-pé-anjo.
Já devia ser por volta de uma hora ou mais da manhã quando a orquestra começou a tocar ritmos mais agitados, todos falavam alto tentando fazer-se ouvir. Na verdade nem dava mais pra conversar devido a volume das musicas e das conversas das pessoas. A pista de dança ficou lotada e a festa bastante animada. Renner dominou o microfone, ora fazendo uma interpretação solo ora fazendo duplas com alguns cantores da orquestra, mas sempre, sozinho ou em dupla, arrancando efusivos aplausos.
Cidinha me propôs tira-la pra dançar. O exercito tinha me ensinado tudo, menos dança de salão. Mas uma coisa o soldado tinha aprendido, não fugir, apenas recuar para estabelecer novas estratégias de ataque. Pedi licença para dois outros daquele maravilhoso coquetel, com isso ganhava tempo para estudar qual seria o próximo passo. Aceitando o convite para dançar, poderia ser um fiasco, já que não saberia dar um passo no salão, ainda mais, se levantasse daquela cadeira acompanhado de quem entendia do assunto, viraria o alvo das atenções e das chacotas quando errasse. Podia ainda admitir que não sabia nada de dança e pedir que me ensinasse.
A hora de recuar tinha se esgotado e então admiti com todas as letras que era um palerma no meio do salão. Então ela me disse que isso não seria problema, pois em alguns segundo eu estaria dando um show pra todos ficarem de boca aberta. Embalado pela animada Cidinha e pelo álcool na cabeça, levantei-me e a levei para o meio da pista. Como já havia previsto, todos olharam, uns com indignação e outros com admiração.
A mulher era de fato um anjo. Seus pés flutuavam ao som de cada nota musical e aos poucos senti me soltar e não terminou nem mesmo a primeira musica, e eu já entendia tudo o que precisava fazer.
Nunca dancei tão bem e tão solto em minha vida, como naquela noite. O coronel e a filha sorriam a aplaudiam, até mesmo o tenentinho carrancudo esboçou um sorriso, que até hoje me indago de para mim ou de mim.
- O segredo da dança – dizia Cidinha ao meu ouvido – é deixar a musica entrar em você e permitir que seu corpo se embale no ritmo da musica. O resto você inventa!
Chegou um momento em que os demais casais deixaram a pista livre para nos dois, e formaram um circulo ao redor para que dançássemos livres sem esbarrões. Nossa dança virou um espetáculo à parte, rendendo comentários do maestro, animando a todos seguirem nossos passos.
Ao termino de uma canção, Cidinha me propôs segura-la nos braços, curva-la até quase o solo e depois, de vagar, de joelhos traze-la de volta até colar nossos rostos e beija-la apaixonadamente, boca com boca. Um cena apoteótica nunca vista nos melhores filmes românticos da época, que faria suspirar até o mais insensível coração. Para mim ela era apenas uma senhora, que apesar de um bom papo não me despertava nenhum desejo. Beija-la não seria nenhum problema para um jovem que mal passava dos vinte e cinco anos de idade.
Como se aos nosso pés houvesse nada mais que as nuvens do céu, bailamos soltos como folhas ao vento e no final da canção eu a segurei nos braços e, reverentemente, ela escorregou até quase o solo, e eu a trouxe de volta, pondo-me a sua frente. Ajoelhei e de joelhos, beijei-lhe as mãos. As pessoas que até então só assistiam em silencio, aplaudiram esse gesto solene e de respeito. Ela sorriu e reverenciou a todos, dali fomos para a mesa, pus seu casado sobre seus ombros e da mesa fomos para fora onde seu carro e o motorista particular nos esperava.
Já a porta do carro ela me perguntou se gostaria de ficarmos juntos. Disse que gostaria muito, mas que os afazeres do dia seguinte me impediam de acompanhá-la. Sentou-se no banco traseiro, afastando-se da porta para deixar o lugar livre, mas eu não tive coragem de entrar. Ela então deixou cair e na linha entreaberta que subia da barra até perto da cintura, expôs um belo par de pernas. Fiquei ali imóvel vendo-a sorrir. Como não tive a iniciativa de adentrar ao carro, ela mandou que o motorista tocasse em frente. Fechei a porta quando o carro já começava a rodar num suave movimento. Ela abaixou o vidro e jogou beijos. Foi a última vez que a vi. Eu sabia o que ela querida, mas me faltou a coragem de um soldado que nunca foge de um bom combate.
Se fosse hoje, sabendo como são deliciosas as mulheres de sessenta anos, eu a teria beijado na boca, um beijo demorado de fazer inveja aos casais apaixonado, e depois, em meio a todos os olhares, seguido com ela de braços dados para o pórtico da entrada, onde o seu carro a esperava. Dispensava o motorista e seguia dirigindo seu carro para um dos mais requintados motéis da cidade, para terminar a noite imersa nas borbulhas do melhor champanhe. Teria feito amor, suave, denso e carinhoso, como nunca tinha feito até então.
Mas o respeito por uma pessoa mais idosa me fez ponderar que aos vinte e sete anos de idade, não era idade pra fazer amor com uma mulher de sessenta. Este soldado, corajoso que nunca fugia dos embates e que até já havia enfrentado lutas armadas, no fundo, teve medo e por isso recuou nessa missão. Com um contador de historias que seria, perdeu a oportunidade única de ter aqui mais um belo conto erótico.
O tempo passou, mas aquele baile deixou inesquecíveis recordações porque marcou uma mudança radical em nossas vidas. Três soldados condecorados com honra ao mérito por terem participado de eventos inconfessáveis, dos quais não nos orgulhamos, partiam para a insegurança da vida civil.
O coronel Azanor, aposentou-se dois anos mais tarde. Reformado, alguns meses depois morreu de morte súbita, sentado assistindo a agonia do presidente Tancredo Neves e a ascensão do então vice, José Sarney.
Dermeval assumiu seu lado homo afetivo e foi morar com o oficial da marinha que conheceu no baile.
Renner prosseguiu com a carreira, fez dupla com um amigo de infância, e a dupla tornou-se um grande sucesso.
Ciqueira não se casou, até o dia e que se reencontrou com a filha do coronel. Já divorciada do então tenente, casaram-se e hoje são grande pecuaristas no município de Corumbá, Mato Grosso do Sul.
Cidinha, infelizmente a ultima vez que tive noticias dela foi ao ver seu nome nos obituários do jornal O Estado de São Paulo.
O garçom que nos serviu o coquetel, recentemente eu o encontrei dono de um dos mais luxuosos restaurantes de São Paulo. Tornou-se um empresário de grande sucesso.
Quanto a mim, virei um contador de historias, trocando os nomes, mas conservando os fatos, como estes ocorridos na noite que mudou nossas vidas!
EREDIA, Antonio Emilio Darmaso Publicado em Meu livro Proibido On line São Paulo-SP, 26 de julho de 2012 - 22horas e 24 min
ESTE É UM CONTO DE FICÇÃO BASEADO EM FATOS REAIS. OS NOMES DAS PESSOAS FORAM TROCADOS PARA PRESERVAR SUAS IDENTIDADES. A TRANSIÇÃO DA PROFESSORA DE DANÇA FOI PRESUMIDO EM RAZÃO DA IDADE E NUNCA CONSTOU DE FATO DOS ÓBITOS PUBLICADOS PELO JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO.