Era um final de semana muito quente. Meu tio doara a madeira para construção do salão de fastas do clube e meu primo pediu a minha ajuda. Passamos a manhã toda selecionando caibros e vigotas e pondo no caminhão. Depois do almoço fomos até o clube para descarrega-las.
Como não tinha acesso para aproximar o caminhão do local em que devíamos empilhar a madeira, tivemos de carregá-las nos ombros, caibro por caibro, vigota por vigota. Por volta das três horas da tarde, já havíamos praticamente descarregado mais da metade da carga. Nem um copo de água tínhamos tomado até então e estávamos sedentos.
Várias pessoas começaram a chegar no clube e se juntar na ala já terminada. Uma garota linda, cujo nome não me lembro de fato, sorriu enquanto deixou cair a saída de banho revelando curvas esculturais e se atirou na piscina.
Quando faltavam apenas duas ou três vigotas para descarregar, pedi licença para o meu primo, peguei minha “Tuka”, uma antiga máquina fotográfica, com que fiz fotos memoráveis. Uma delas foi dessa tal garota das curvas esculturais.
Fui até a beira da piscina e disse-lhe que gostaria de ter uma foto dela como lembrança. Ela se posicionou nas escadas e consentiu que eu a fotografasse. Depois conversamos por alguns segundos. Expliquei que estava ali ajudando a descarregar a madeira que o meu tio tinha doado para o salão de festas do clube. Naquele momento me senti como alguém orgulhoso por estar prestando relevantes serviços àquela sociedade.
Dali, já retornando para ir embora, quando chegou o dono ou encarregado da cantina que, sabendo o quando havíamos trabalhado nos ofereceu um refrigerante. Para quem estava cansado nada melhor para encerrar o dia bebendo uma caçulinha. Eu e meu primo, sentamos em uma das mesinhas do barracão a beira da piscina para beber e olhar aquela figura escultural nadando como uma linda e majestosa sereia. Estava tão absorto que não percebi a presença de um senhor, por volta lá de seus cinqüenta anos, meio grisalho e com o pescoço torto para um lado. Ele se aproximou aos berros - O que vocês estão fazendo aqui?
Meu primo meio encabulado tentou explicar porque estávamos ali, mas ele sem dar ouvidos, agarrou-me pelo braço e levou-me praticamente arrastado para fora do clube. Nunca me senti tão humilhado. Meu primo nos seguiu e quando chegamos ao portão ele disse: - Você fica – para o meu primo – mas você... –empurrou-me para fora - ...você não é sócio, portanto, rua!
Saí com um ódio mortal e disse a mim mesmo: - antes que o encontre novamente espero que esteja morto.
Semanas mais tarde, com o retorno às aulas, descobri que o dito cujo, mal criado que me pos para fora do clube em humilhação, era o diretor da escola onde eu deveria passar os meus próximos oito anos. Não suportaria jamais encontrá-lo pelos corredores. Nossos olhos se cruzariam e quando se cruzassem, tanto da minha parte como da parte dele, haveria algo de ruim em nossos pensamentos.
Finalmente consegui que minha mãe me matriculasse na Humberto de Campos, uma escola particular.
Embora vivêssemos na mesma cidade nunca mais o vi ou cruzei seu caminho. Aquela pessoa depois de me ter enxotado as turras do clube onde não era sócio, para mim, tornou-se a mais abominável das pessoas.
Terminado o ginásio, mudei-me para Marília e depois para Tupã.
Em Tupã, fiz questão de comprar um titulo de sócio de cada clube da cidade. Não que fizesse questão de freqüentá-los, mas para poder sentar e tomar o que eu quisesse e não ser importunado por ninguém. Queria ter certeza de que ninguém me poria portão afora como fui posto para fora naquele fatídico dia.
Passados muitos anos, já formado, advogado, peguei uma causa em Paranavaí, palco de todos esses acontecimentos.
Queria aquela causa, porque serviria de pano de fundo. Na verdade queria mesmo era um motivo para reencontrar o famigerado senhor. Olhar no fundo dos seus olhos e perguntar: - Sabe quem eu sou? Sou aquele moleque que um dia largou um guaraná caçula pela metade, porque você o expulsou naquele clube!
Mas a vida nos reserva coisas inimagináveis. Quando cheguei na cidade disposto a encontrá-lo, lembrei-me de que, já se haviam passados vinte anos, ele seria um velho, quem sabe numa cadeira de rodas com os olhos fundos carcomidos pelo tempo. Senti pena ou quem sabe remorso. Como seria agora, vinte anos mais tarde ficar frente a frente daquele desagradável ser?
O que poderia resultar de um encontro de vingança? O que era ódio transformou-se em uma inesplicável necessidade de pedir perdão.
Perdão por não tê-lo compreendido em suas limitações e por te-lo odiado tanto e por tantos anos.
Fui à escola. Alguém certamente me diria o seu paradeiro, quem sabe ainda estivesse por lá.
Ninguém o conhecia ou ninguém se lembrava dele. Já estava de saída quando uma das antigas serventes veio ao meu encontro e me disse: - Você procura pelo... Sinto muito, meu senhor, mas ele morreu.
Quando ouvi as palavras "ele morreu" senti um arrepio. Lembrei-me de quando eu disse a mim mesmo, em pensamentos, - “antes que eu o encontre de novo você estará morto”.
Pedi então que ela me falasse mais sobre ele - Eu o respeitava muito – continuou ela - Em seu leito de morte ele me chamou e me disse: - Todos estes anos esperei reencontrar uma criança, um moleque de rua, a quem devo pedir perdão. Eu o maltratei e ele não merecia.
Os olhos daquela mulher se encheram de lágrimas. Esperei. Recompondo-se ela concluiu: - Quando você... Perdão, o senhor, entrou por aquele portão até pensei, esse poderia bem ser a criança da qual o professor falava. Mas com certeza não é, posso ver nos seus olhos que nunca foi um moleque de rua.
Saí de lá agradecido e aliviado. Que descanse em paz o velho professor. Com ele, depois de morto, aprendi essa grande lição: - Não podemos esperar muito para pedir perdão.