Faz alguns anos, mas me lembro com se fosse hoje. Certo dia, quando chegava em casa notei estacionado em frente ao meu portão um carro com placa de outra Rinópolis, era de um amigo e a noiva que iam se casar e queriam que eu fosse padrinho. Quando recebemos um convite assim o primeiro pensamento e não aceitar, mas como não aceitar um compromisso que nos honra, especialmente vindo de duas pessoas que significam muito para nós?
Acontece que alguns anos antes deles se conhecerem, eu tinha feito uma aposta com esse meu amigo que no dia em que ele se casasse eu tiraria a barba. Nós os barbudos convictos nos sentimos desnudos sem barba, por isso é mais fácil andar pelado pela rua do que sem barba. Só que promessa é promessa.
No dia do casório fui para Rinópolis. Terno, gravata borboleta, sapato preto brilhante e destoando de tudo, no pulso um desses relógios que marca tudo, até as horas. Como não era de costume não levei aparelho de barbear. Aliás tinha até me esquecido dessa aposta. Mal pus os pés na cozinha da casa, ele já me encarou:
- Ah! Ah! Vai ter que tirar a barba!...
- Caralho... Você se lembrou disso?
Não só lembrou como foi intransigente. - Ninguém está obrigado a prometer, mas se prometeu tem de cumprir!
Nisso entrou na conversa a tia Socorro: - É mesmo, se não cumprir o casal vai ter dez anos de azar!
O tio Custódio, que enxugava todas, já se aproximou com um copo de cachaça e andando meio que caçando frango pra engrossar a fila dos agourentos: - É isxo... Xe meux xobrinhos querem que oxe tira exa porra da cara, xe tira essa porra, ohhh!...
Ainda bem que não prometi cortar o pinto, porque a barba cresce de novo. – Tudo bem, quem tem um aparelho de barbear pra me emprestar?
O nono já gritou lá da sala – Ninguém vai usar o meu... Aparelho de barbear é como revolver e mulher, quem tem não empresta pra ninguém.
- Bom, nesse caso devo procurar um barbeiro!
Parte II
A cidade não era nem é muito grande, na época não mais que nove mil habitantes. Todos os moradores praticamente se conheciam. Logo me indicaram uma barbearia que diziam ser tradicional e a melhor, sem contar que o velho tinha como ajudante a filha viúva, de trinta e poucos anos, uma gostosa.
O salão era de fato bem arrumadinho. Entrei no momento em que um dos clientes abriu a porta para sair. Não tinha mais ninguém na minha frente pra ser atendido. Uma ruiva sorridente, não aparentava ter trinta anos de idade, dois longos pares de pernas e seios generosos me cumprimentou e indicou uma das cadeiras para que eu me sentasse.
Em seguida ela veio com uma loção refrescante, fez uma relaxante massagem no meu rosto e em seguida o cobriu com uma toalha morna. – Você por acaso e a... Como se diz... “Barbeira”?
- Não, eu apenas faço as preliminares, depois o meu pai faz o resto. Meu pai é um ótimo barbeiro. O melhor se quer saber, ele é um mestre da navalha! Você quer o serviço completo?
- Completo... Quer dizer, completo como?
- Quer que tire tudo ou só rebaixa um pouco?
O pai dela era o mestre da navalha. Até ai tudo bem, afinal tratava-se de um salão tradicional e nada mais tradicional que uma navalha. O velho chegou simpático como todo barbeiro e habilidoso na arte de afiar o corte em uma correia de couro. Enquanto preparava a navalha pediu pra filha ligar o televisor.
- Hoje é final de campeonato. Corinthians e Palmeiras. Caraio já estão em campo!
Levantei um pouco a toalha que cobria meu rosto, e só ai percebi que o barbeiro era vesgo e sofria de mal de Parkinson. Na pia havia uma ou duas pedras umes, dessas usadas para estancar pequenas hemorragias já avermelhada do sangue dos clientes anteriores.
Com um olho no televisor e outro em mim, ele aproximou a navalha perigosamente do meu pescoço. – E ai corintiano como vai ser, faço só o fio ou quer tirar tudo?
Delicadamente afastei-lhe a mão trêmula pra dizer que eu não torcia pra nenhum dos dois times. - Estou indeciso ainda se vou ou não rapar a barba!
- Não sei que porra é essa, mas de uns tempos para cá minha mão deu a tremer!
Por sorte ele se virou pra acompanhar um lance quando decidi rapidamente sair da cadeira.
- Oh! O filho da puta do juiz não viu o toque de mão...! - Virou-se quando eu já estava saindo pela porta. - E ai corintiano, desistiu de “raspar” a barba?
Na verdade eu optei por ficar com a minha cabeça no lugar, se por manter a barba e o pescoço daria dez anos de azar aos meus amigos, que me perdoassem, mas dez anos é rápido pra passar.
Claro que não sai sem pagar à moça, enquanto o Corinthians marcava um primeiro gol. Aproveitei para lhe passar o número do meu telefone: - Liga pra mim qualquer dia desses! - Bom, até ontem ela não havia ligado, deve tê-lo perdido. Desde então nunca mais apostei a minha barba e faço questão de eu mesmo apara-la quando preciso.
Parte III
Quando cheguei ao casório a noiva já estava descendo do carro para entrar na igreja. O padre me olhou com um ar de censura por ter sido o ultimo dos padrinhos a entrar. Pude ver que ele também usava uma barba como a minha. Após o termino da cerimônia, enquanto todos se cumprimentavam, o padre enfiou a mão no bolso e de lá retirou um aparelho de barbear de ultima geração, deu-o para mim e me disse: - Use um desses para desbastar a barba e acertar a linha! Até hoje tenho usado aparelhos de barbear modernos como aquele. Não perguntei, mas presumo que um dia ele, o padre, também foi fazer a barba naquela barbearia tradicional!
FIM
Foto e texto: Antonio Emilio Darmaso Eredia Tupã-SP, 06 de janeiro de 2013