Publicado em 06 de dezembro de 2011 as 17h e 15min. em MEU LIVRO (PROIBIDO) ON LINE (Na foto ao lado - Atila o boi desta historia)
Há um momento na vida em que nos deparamos com situações até então corriqueiras, mas que de repente nos parece diferente e nos faz pensar de outro modo, influenciando todo o nosso futuro.
Isso ocorre nos relacionamentos, nas profissões e pode mudar para sempre nosso comportamento. Talvez resida nessa capacidade de mudar a beleza e a grandeza do ser humano em ser relativamente diferente de outros animais.
O fato é que, são momentos especiais que marcam o fim de um estágio e o início de outro, com profundas, e as vezes radicais, modificações no nosso modo se ser, de agir e de ver as coisas. Quanto positivas forem essas mudanças, e quase sempre o são, toda a humanidade ganha, mesmo que não saibamos disso, quando negativas, todos perdem. Não importa, o que importa é que mudamos. Uns chamam a isso de romper paradigmas, mas eu chamo apenas de tomada de consciência ou simples abandono de uma via fútil ou que se tornou fútil para renascer em uma nova vida mais plena e, quiçá, mais feliz.
Uma dessas mudanças acorreu em mim e em meu pai no ano de 1982, quando eu ainda cursava um dos últimos anos da faculdade de direito. Tínhamos uma fazenda de leite na cidade de Quintana, Estado de São Paulo. Um investimento ousado para a época, quando ainda compensava investir em qualidade. Depois de comprar novos e sofisticados equipamentos, era chagado o momento de renovar o plantel de gado leiteiro.
Para a renovação do plantel é sempre necessário por a venda alguns animais e adquirir outros de boa procedência, com criadores reconhecidos e idôneos. Mas o que fez a mudança em nossas vidas não foi a compra de melhores animais. Foi a venda do boi Atila, que já não servia mais aos propósitos do novo empreendimento.
Esse era um boi da raça Pitangueiras, adquirido na fazenda três barras de um conhecido criador, que servia tanto para produção de leite como para o abate.
A venda de várias reses foi anunciada e compradores de todos os poderes aquisitivos vieram até a propriedade e adquiriram as vacas na proporção de suas necessidades, mas ninguém se interessou por Atila, um boi enorme de mais de cem arrobas, improprio para cruzamento devido ao peso excessivo e totalmente diferente da raça recém adquirida com finalidade exclusiva leitera.
Atila permaneceu isolado em um pasto, mas ao sentir o cheiro do cio das novilhas avançava derrubando cercas e tudo que tivesse a sua frente, inclusive eventuais concorrentes. Tornou-se uma ameaça o futuro do plantel. Em embate para disputa de fêmeas, abateu um dos melhores reprodutores holandeses P.O. que depois de ser agredido tornou-se inválido.
Com suas constantes investidas seu destino foi traçado. Atila tinha que ser levado para outro lugar, longe daquela propriedade.
Espalhamos cartazes oferecendo Atila, mas ninguém se interessou em compra-lo apesar do baixo preço. Dois meses já haviam se passado sem nenhum comprador, até que certo dia apareceu um interessado. Dizia ser admirador da raça Pitangueiras e desejava iniciar um plantel. Como Atila era um puro sangue de origem o boi lhe interessava, no entanto dizia que pagaria por ele o quanto pesasse ao preço de mercado por arrobas.
O negocio foi fechado em cem arrobas, diga-se de passagem, um “negocião”, já que os frigoríficos não compram bois acima de vinte arrobas.
O novo dono meteu a mão na goiaca de quatro bolsas e tirou alguns rolos de dinheiro que jogou sobre a mesa para que conferíssemos. No dia seguinte voltaria para embarca-lo.
Ficamos felizes e satisfeitos, até porque não queríamos que Atila fosse abatido, era jovem e poderia ainda deixar muitos descendentes, além do fato de ser um animal de estimação. Animal dócil, embora temido combatente quando o assunto era disputar uma fêmea.
No dia seguinte chegaram o comprador e outro sujeito montados em uma Kombi, dizendo: - Viemos buscar o boi! – fiquei um tanto indignado – Como poderiam eles embarcar um boi pesando mil e quinhentos quilos, em uma perua tão pequena? – as isso era problema deles, o boi não nos pertencia mais.
Os dois foram até a cocheira onde Atila estava enquanto eu e meu pai fomos cuidar de outros afazeres. Estávamos no estábulo de leite cuidando da troca de uns insufladores quando ouvimos um baque seco e o boi berrou um som surdo que fez nossos pelos ficar arrepiados. Mais outro baque seco, e decidimos averiguar o que estava acontecendo.A uns cinquenta metros de onde estávamos, debaixo de uma árvore, Atila estava amarrado ao tronco da árvore e o sujeito mal encarado com uma marreta tentava matar o boi golpeando-o na cabeça.
- PAREM, o que estão fazendo? – Gritou meu pai de onde estava.
Os dois pararam e nos aproximamos. Atila mantinha-se de cabeça baixa, babando, língua para fora, olhos vermelhos e um fio de sangue escorria pelas narinas.
- Se eu soubesse que iam matar o boi eu não o teria vendido! – Disse meu pai – Vou devolver o dinheiro e vocês me devolvem o boi!
O homem que comprou Atila, se aproximou do meu pai, a mão por cima da camisa apoiada no que parecia ser o cabo de um revolver na cintura, petulante, para não dizer ameaçador disse, olhando olho no olho do meu pai – Um homem depois de faz um negócio não se arrepende, quem se arrepende pra mim é marica!
Então eu interferi, sabia que meu pai o encararia com ou sem revolver, fazendo-o engolir cada letra da palavra “marica”. Me pus entre os dois e falei em tão calmo e apaziguador: - Não se trata de arrependimento é que não gostaríamos que o boi fosse abatido!
O homem então, todo cheio de si, sem tirar a mão do revolver, com a outra ergueu a aba do chapéu e me encarou como se fosse o dono do mundo. Seus dois dentes de ouro eram as únicas coisas que valiam alguma coisa ali encrustado naquele monte de bosta. Senti seu hálito repugnante cheirando a esgoto, e vertendo saliva em meu rosto, falou:
- O boi é meu, comprei e paguei, faço com ele o que eu quiser! – Dizendo isso ergueu a camisa para que víssemos o cabo de um revolver e soubéssemos que de fato estava armado.
O sujeito que o acompanhava, abaixou a cabeça e ficou chutando grama com a ponta da bota, enquanto conversávamos. Percebi que ele também trazia um revolver na cintura.
- Tem razão, o boi é seu... - eu disse a ele e, usando do mesmo tão de voz que ele usou conclui - ...pode fazer o que quiser, até mata-lo, mas não aqui em nossa fazenda!
O sujeito que estava com a marreta ergueu-a para dar mais um golpe em Atila, quando meu pai a segurou no ar – Levem o boi daqui e façam o que quiserem com ele, mas na minha frente vocês não vão matar esse animal!
O sujeito, contido, desceu a marreta e foi sentar-se num numa raiz saliente da árvore. O dono de Atila, num tão asqueroso depois de limpar a garganta e cuspir o catarro, falou: - Esse bicho do cão tem que morrer, ainda hoje quero beber o sangue desse diabo dos infernos!
Então meu pai os deixou e foi apressadamente para casa. Li nos seus olhos o que lhe passou pela cabeça e o segui par a passo. Quando entrou na casa, foi direto ao quarto e apanhou o revolver, conferiu se a arma estava municiada e a pôs na cintura, escondendo-a por debaixo da camisa. Nisso ouvimos mais uma marretada seca e o berro abafado do boi ecoou em nossos ouvidos como uma suplica.
Não tive escolha, nessa hora o sangue ferveu. Apanhei a cartucheira, meti dois cartuchos e segui meu pai. Ele iria desfazer o negócio nem que fosse a bala, e o faria com certeza. Uma arma contra duas, meu pai acertaria um e eu me encarregaria de acerta o outro. Naquele momento a vida do boi valia mais que as vidas dos quatro homens.
Em minha cabeça de advogado já tinha arquitetado a legítima defesa. Diríamos que os dois indivíduos foram flagrados furtando o boi. Descoberto, reagiram e os matamos, afinal os dois estavam armados.
Atila - O boi que mudou nossas vidas (final)
(Foto acima: Árvore onde Atila foi abatido Fato ao lado: Pedro Darmaso plantando arvores às margens de um riacho - 1988)
Dois tiros seguidos ecoaram no ar, e Atila tombou, antes que nos aproximássemos de seus algoz a uma distancia razoável ao alcance de nossas armas. Nada mais podíamos fazer para salvar sua vida. Atila, tombou lentamente, primeiro ajoelhando-se nas patas dianteiras, como quem se ajoelha diante de Deus, olhou fixamente para nós dois e caiu para o lado. Agonizante, despedindo-se do mundo com um ultimo berro abafado.
O sujeito da marreta, percebendo que não poderia abatê-lo, sacou do revolver e atirou duas vezes na cabeça de Atila, matando-o quase que instantaneamente antes que nos reaproximássemos. Não tínhamos mais motivos para prosseguir com nosso intento, a não ser pela nossa raiva, mas aí já seria vingança pertence a Deus, disse meu pai.
Voltou para casa e diante da imagem de Nossa Senhora Aparecida, a Santa de sua devoção, ele se ajoelhou repetindo o gesto de Atila, e jurou que daquele dia em diante nenhum animal que criasse seria entregue ao abate.
No ano seguinte meu pai vendeu a fazenda de pecuária para tornar-se sojicultor no Mato Grosso. Infelizmente três anos mais tarde sofreu um derrame que o impediu de concluir seus novos empreendimentos. Dez anos se passaram até que Deus o chamou para junto de Si. Durante todo esse tempo dedicou a vida a plantar árvores, milhares de árvores na beira de estradas e às margens de rios em terras alheias.
Guardo ainda a velha cartucheira, devidamente legalizada. Sem munição tornou-se uma mera peça decorativa que serve apenas para relembrar aquele dia fatídico. Um dia nas historias de nossas famílias em que a vida de um animal, teria valido mais que a vida de quatro homens.
O comprador de Átila meses depois de tê-lo abatido, foi encontrado morto. Caiu do cavalo quando laçava um boi para matar. Ao cair, teve o corpo trespassado por um tronco fino de árvore de ponta aguçada. Segundo a perícia, sem que ninguém o socorresse, agonizou horas empalado, antes de morrer.
Nos meses que sucederam à morte de Atila, todos os dias, no mesmo horário, o gado aproximando-se daquela árvore no local onde seu sangue foi derramado, fazia um circulo, cheirava, mugia e raspava o solo com suas patas, como que prestando homenagem ao boi que deu a vida para mudar para sempre as nossas vidas e o meu modo de ver os animais.